terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O mito da docilidade feminina

Já faz algum tempo que pretendia escrever sobre o assunto, mas o momento certo para isso sempre me escapava. Eis que, não faz muito tempo, li o seguinte comentário no twitter, feito por um conhecido militante da esquerda brasileira (cujo nome não vale a pena ser citado), pensando estar elogiando as mulheres:

“O mundo está como está pois sempre foi governado por homens (...) as mulheres são incapazes de cometer as mesmas arbitrariedades que os homens”.

O sentido é: mulheres são seres bons, logo, incapazes de cometerem qualquer tipo de atrocidade. Esse é o papel dos homens. Ao ser questionado, por uma mulher, que dizia “ser tão durona quanto qualquer homem”, o responsável pelo primeiro comentário continuou sua argumentação, até a garota citar Margaret Tatcher. Ao que o rapaz respondeu: “Tatcher é um homem de saias”, afirmação esta que será melhor abordada ao longo do texto.

Como já dissemos no texto de mesmo nome que o blog, “Quem mandou nascer mulher?”, todos nós, homens e mulheres, somos construções sociais. Nascemos machos e fêmeas e, a partir de nossa educação, somos moldados, de maneira a nos encaixarmos nos modelos estipulados para meninos e meninas. Somos, portanto, resultados de um processo histórico, que pode ser diferente dependendo da sociedade em que se viva (sociedades indígenas divergem da nossa, ocidental, por exemplo). É preciso, então, atentar para a naturalização desse processo, pois isso significa tornar naturais “processos socioculturais contra a mulher e outras categorias sociais”[1], uma tentativa de “legitimar a ‘superioridade’ dos homens, assim como a dos brancos, a dos heterossexuais, a dos ricos”[2].

Tratemos, portanto, da construção do mito da docilidade feminina.

Quando pensamos em uma mulher, nos vêm à cabeça determinados valores e imagens: a maternidade, a afetividade, a esposa, a dona de casa etc (isso sem incluirmos a área de cosméticos). Quando não se pensa em esposa ou dona de casa (já que hoje vivemos uma sociedade que consegue, ainda que de maneira tímida, pensar a mulher fora desses papéis), pensa-se, certamente, na fragilidade, no amor, em como as mulheres são seres emocionais, dotados de imensa paciência e atentos a detalhes (inclusive, muitas vezes relaciona-se a mulher somente a profissões que exigiriam essas características, tal qual a enfermagem ou a docência).

Ora, se pararmos um pouco para pensar, este modelo de mulher não é mais do que parte do modelo burguês da família ideal:

“Frágil e soberana, abnegada e vigilante, um novo modelo normativo de mulher, elaborado desde meados do século XIX, prega novas formas de comportamento e de etiqueta, inicialmente às moças das famílias mais abastadas e paulatinamente às das classses trabalhadoras, exaltando as virtudes burguesas da laboriosidade, da castidade e do esforço individual. Por caminhos sofisticados e sinuosos, se forja uma representação simbólica da mulher, a esposa-mãe-dona-de-casa, afetiva mas assexuada, (...)” [3]

À mulher continua imposto o modelo burguês de “esposa-mãe-dona-de-casa”, ainda que não seja nenhuma das três. Ao sexo feminino estão associados o sacrifício, o amor, a bondade, sendo a mulher “identificada à religiosa ou mesmo considerada como santa, à imagem de Maria”. [4]

Ora, o simples fato de esse ser um modelo burguês já nos bastaria para mostrar que essas características não são inerentes à mulher, já que fazem parte de uma sociedade específica, diferenciando-se, portanto, de outras. Voltemos á afirmação do 4º parágrafo: somos construções sociais, resultados de um processo histórico e, trazendo novamente à tona Simone de Beauvoir, “uma sociedade não é uma espécie” [5]. Afirmar a existência de uma natureza feminina significa afirmar uma natureza humana, como se mudássemos apenas na superfície e a cultura não passasse de um epifenômeno [6]. Deixa-se de lado o fato de “(...) Ao contrário do reino animal, imerso na natureza e submetido ao seu determinismo, o humano – no caso, a mulher – é um ser histórico, o único vivente dotado da facudlade de simbolizar, o que o põe acima da esfera propriamente animal (...)” [7]

Citemos alguns fatores que podem deixar tais afirmações mais claras:

Claude Meillassoux, antropólogo francês, afirma estarem as relações de parentesco condicionadas ao modo de produção do grupo. Nas sociedades primitivas de caça e coleta, por exemplo, cada indivíduo era praticamente um ser auto-produtivo, sendo raras as atividades coletivas, estas feitas por adesão voluntária. Nesse sentido, “não havendo necessidade de coesão, os grupos são voluntários, de constituição frouxa, os indivíduos, tanto homens como mulheres, têm ampla autonomia e mobilidade entre os grupos, e os produtos do sempre efêmeros acasalamentos são tomados como filhos do grupo, uma vez feito o desmame, a prole nem sempre acompanhando os arbitrários deslocamentos dos pais. Os laços são de adesão, e não de parentesco, pois estes significariam estruturas diretivas da vida de cada indivíduo e de cada geração, isto é, laços parentais ligando indivíduos e gerações, o que não ocorre nesse tipo de agrupamento humano”. [8]. A mobilidade dos indivíduos é essencial para sua reprodução, pois embora os grupos sejam auto-produtivos, não são auto-reprodutivos, sendo necessárias mais pessoas para isso. No entanto, a partir do momento em que se introduz a agricultura no modo de produção, tais relações mudam. Uma vez feito o “investimento”, os indivíduos que o realizaram tendem a permanecer coesos por toda a duração do ciclo agrícola. Cria-se, portanto, a noção de duração, fazendo com que se passe “a relacionar, a criar vínculos entre as gerações (...), relações de parentesco, relações de filiação, passando a controlar, portanto, a mobilidade dos indivíduos que, como se sabe, é o mecanismo fundamental para a reprodução dos efetivos humanos das comunidades (...).”; [9]. A preocupação com a continuidade da produção passa a ser uma preocupação com a manutenção do grupo, ou seja, a manutenção de suas capacidades reprodutivas, sendo essencial o papel da mulher enquanto reprodutora. Torna-se necessária, portanto, sua pernanência no grupo. O homem, por outro lado, tendo uma capacidade reprodutora mais flexível, pode circular entre os vários grupos. Estabelece-se, então, a virimobilidade e a gineco-estática.

Não nos cabe aqui o aprofundamento na teoria de Meillassoux, mas trata-se um exemplo de como a constituição das relações entre homens e mulheres é histórica, não sendo puramente natural.

Para o mesmo fim, podemos citar também Margaret Mead. Em seu livro “Sexo e Temperamento”, a autora realiza um relato sobre a vida de povos primitivos, colocando em xeque os conceitos tradicionais sobre homens e mulhers. Afirma:

“Com a escassez de material para elaboração, nenhuma cultura deixou de apoderar-se dos fatos de sexo e idade de alguma forma, seja a convenção de uma tribo filipina de que o homem não sabe guardar segredo, a crença dos Manus de que somente os homens gostam de brincar com bebês, a prescrição dos Toda de que quase todo trabalho doméstico é demasiado sagrado para as mulheres, ou a insistência dos Arapesh em que as cabeças das mulheres são mais fortes do que as dos homens.” (grifos meus) [10]

Penso que os destaques falam por si só, mas vale a pena ressaltar: em algumas sociedades, homens desempenham papéis que para nós seriam considerados femininos, como o cuidado de bebês ou o trabalho doméstico. Claramente, não são essas funções naturais do um sexo ou outro.

Ou seja, voltando ao comentário que incitou a criação deste texto: mulheres não são seres pacíficos naturalmente, mulheres são educadas para desempenhar esse papel.

Peguemos, agora, um comentário feito neste post do blog Escreva Lola Escreva:

“’Vamos tornar grosserias na rua inaceitáveis’. Chamando eles de palhaços e outras coisas, e fazendo cara feia? Voltamos àquela conversa do post 'Como fazer com que eles escutem?'. Isso não muda a cabeça de ninguém. Vocês querem puní-los ou educá-los (os que estiverem dispostos a isso)?"

Muito bem. O homem responsável pelo comentário exige um comportamento específico das mulheres que sejam assediadas. Elas não devem brigar, devem educadamente dizer que não gostaram do que lhes foi dito, continuando, assim, em seu papel dócil e amável. À mulher não é permitido levantar a voz, a mão, enfim, reagir a uma grosseria. Esse homem, se alvo de uma brincadeira estúpida na rua, certamente não responderia com um abraço ou algo parecido. Enquanto isso, mulheres não devem fazer “cara feia”, pois isso não educa ninguém. Se alvo de uma grosseria, devemos passar a mão na cabeça do autor e dizer “não faça isso, não gosto, é muito feio, ok?”.

Infelizmente, por melhores que tenham sido as intenções do autor do primeiro comentário (engrandecendo a mulher, colocando-a como “bondosa”), ele é perigoso, pois a lógica por detrás dos dois textos é a mesma: a lógica dominante,que diminui a mulher enquanto sujeito político, limitando sua ação a atitudes condizentes com sua “pureza”. Essa é a “mulher pensada na linguagem romântica das classes dominantes (...), como encarnação das emoções, dos sentimentos, incapaz de resistir” [11] Um modelo de mulher que “implicou sua completa desvalorização profissional, política e intelectual” [12] A afirmação de que mulheres são seres dóceis foi utilizada repetidamente de maneira a depreciá-la, colocá-la fora de posições de liderança, e tratar como anormais aquelas que não se encaixam nesse papel, além de justificar inúmeras atrocidades, como o estupro, pois homens seriam “ativos” e mulheres “passivas”, devendo elas servirem ao homem.

Agora, a citação de Tatcher: “Margareth Tatcher é um homem de saias”. Se essa tentativa de argumentação fosse feita porque ela atua perpetuando o patriarcado de maneira a continuar com seus privilégios de classe, talvez fosse válida, mas, infelizmente, o uso corrente dessa “crítica” não se dá devido às posições políticas de Tatcher per se, mas sim pelo fato de tomar posições de liderança, agressivas. Desse modo, o que seria a crítica a uma pessoa conservadora acaba por exibir um conservadorismo de mesma índole (vale lembrar, porém, que esse “apelido carinhoso” é usado tanto por críticos do governo de Tatcher quanto por admiradores).

Desse modo, é preciso atentar para os diversos preconceitos que aparecem diluídos em nossa sociedade, pois é justamente por estarem diluídos que se tornam mais perigosos. Essa diluição se dá pela des-historicização de fenômenos históricos. É preciso ressaltar que “lembrar que aquilo que, na história, aparece como eterno não é mais que o produto de um trabalho de eternização que compete a instituições interligadas, tais como a família, a igreja, a escola, e também, em uma outra ordem, o esporte e o jornalismo (...) é reinserir na história e, portanto, devolver à ação histórica, a relação entre os sexos que a visão naturalista e essencialista dela arranca (....).
É contra estas forças históricas de des-historicização que deve orientar-se, prioritariamente, uma iniciativa de mobilização visando repor em marcha a história, neutralizando os mecanismos de neutralização da história”.[13]


[1] SAFFIOTI, Heleieth I.B, O Poder do Macho, Ed. Moderna, p. 11.
[2] Idem.
[3] RAGO, Margareth, Do Cabaré ao Lar – A Utopia da Cidade Disciplinar, Brasil 1890 – 1930, Ed. Paz e Terra, p. 82.
[4] Idem.
[5] BEAUVOIR, Simone de, O Segundo Sexo, Ed. Difusão européia do livro, p. 56.
[6] Badinter, Elisabeth, Um amor Conquistado – O Mito do Amor materno, Ed. Nova Fonteira, p. 15;
[7] Idem
[8] GARCIA, Francisco Montero, Ser Social, Dominação e Violência – Um estudo do binômio dominação-violência a partir de uma perspectiva ontológica, com ênfase na questão de gênero. Doutorado em Ciências Sociais, PUC/1999, p. 161.
[9] Idem, p. 162.
[10] MEAD, Margaret, Sexo e Temperamento, Ed. Perspectiva, p. 24.
[11] RAGO, Margareth, Do Cabaré ao Lar – A Utopia da Cidade Disciplinar, Brasil 1890 – 1930, Ed. Paz e Terra. p. 70
[12] Idem, p. 65
[13] BORDIEU, Pierre, A Dominação Masculina, Ed. Bertrand Brasil, p.5.