quinta-feira, 10 de março de 2011

A linguagem da opressão

“Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender como a categoria das “mulheres”, o sujeito do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais busca-se a emancipação.”[1]

Um dos nossos principais meios de luta é a linguagem, pois graças a ela conseguimos nos organizar e nos agregar em torno da causa. A linguagem, por sua vez, está diretamente sujeita ao falante, porque é justamente ele que a constrói.

Ou pelo menos deveria ser.

Por enquanto, quem – ainda – a dita são os homens brancos e heterossexuais. Acontece que esses, a fim de se manterem no poder, aprofundam os meios de opressão ligados ao falante e ao modo que se expressa. Tudo isso porque a linguagem da opressão procura ser sutil (sem muito sucesso, mas mais sutil que a agressão física) e, portanto, é menos mal vista.

“Com a equação lacaniana de "a natureza das coisas" e "natureza das palavras", o sexismo situa-se na própria linguagem.”[2]

A sociedade, fundada sobre os eixos do masculino e da heterossexualidade, encontra formas menos óbvias para expor seus preconceitos. Isso não significa que outras formas de opressão e dominação estejam diminuindo ou acabando, nem que o preconceito chamado “lingüístico” (que é, sim, um preconceito social) seja um preconceito novo ou recente.

"Numa época em que a discriminação em termos de raça, cor, religião ou sexo não é publicamente aceitável, o último baluarte da discriminação social explícita continuará a ser o uso que uma pessoa faz da língua" (James Milroy)[3]

Sim, é claro que antigamente havia variantes na língua. E que eram exatamente estas que distinguiam as classes sociais. A situação hoje é bastante similar, embora muitos tendam a dizer que não, que ninguém desqualifica os argumentos de outrem por seu português incorreto. Essas pessoas ou não são oprimidas ou não discutem ou falam o que escutam sem ter o mínimo de embasamento científico.

O que acontece é que a sociedade nos impõe certas regras. Mas são essas regras apenas regras gramaticais? Debochar da fala de uma pessoa é natural? De onde vieram esses valores? Quem dita a norma culta? Essas perguntas já foram respondidas no início do texto: são os doutos, isto é, os homens brancos e heterossexuais.

A linguagem passa (passa?) a ser apenas um jogo de prestígio e poder. Se sou um homem de uma classe superior e cometo alguns deslizes da norma culta, tudo bem, sem problemas. Se sou uma mulher, que ocupa um cargo considerado, pela sociedade, masculino e cometo um erro serei corrigida pro todos os homens que me escutaram.

“As mulheres são mais cuidadosas que os homens em usar a gramática correta(...)Há, porém, do ponto de vista sociolingüístico, uma explicação mais óbvia para o silêncio e fala diferente das mulheres que a "falta" do falo simbólico de Lacan. Não surpreende que as mulheres estejam silentes considerando-se a sua falta de poder. É certo que o direito de falar foi conseguido em parte. Mesmo quando o direito das mulheres de falar em público não é abertamente contestado, poucas mulheres falam. Em suas conversas íntimas com membros do sexo oposto, as mulheres falam menos, menos freqüentemente, e são mais interrompidas. Os sociólogos situaram essa "incompetência" não numa identidade simbólica da mulher, mas na sua situação como impotente. Se os tópicos que as mulheres apresentam fracassam, não é porque sua capacidade simbólica esteja prejudicada, mas porque os homens não se dão ao trabalho de reciprocamente responder ao que elas dizem.[4]. O ponto que gostaria de ressaltar é que o preconceito lingüístico não passa de um preconceito social: de classe, de gênero e/ou de raça.

Imaginem agora que uma mulher assume o cargo de presidenta do país. Imaginem que essa mulher, ao participar de debates na televisão não se porta como esperam que uma mulher se porte. Não é delicada e simpática, é bastante enfática ao dizer o que defende (mesmo com as minhas discordâncias com o PT, não é algo que dê para negar). O que acontece?

A mulher que não seguiu os padrões de mulher não é mulher, simples assim. Um preconceito muito misógino, por sinal. Questionam sua sexualidade dizendo que ela foi agressiva no falar. Seu oponente, homem branco e heterossexual (que coincidência, não?), ao ser igualmente agressivo no falar é enfático e sabe defender suas idéias. Ela é, no mínimo, grossa.

Dilma nadou contra a corrente, assim como a Marina – embora de formas diferentes. As duas se colocaram para falar. Afinal “Falar é assumir poder, e as mulheres, como observou Beauvoir, deixam de se afirmar nesta como em outras áreas”[5].

A linguagem é um produto político-social e, como tal, ela não apenas dá mais crédito a quem está “no comando”, como também procura destruir aqueles que seriam seus “subordinados”. Assim sendo, parece óbvio que a linguagem é machista, homofóbica e racista.

“Há apenas uma linguagem e nela as mulheres estão em significativa desvantagem. Elas falarão sempre com uma autoridade de empréstimo e sempre terão problema com o conhecimento analítico-racional do "que se diz".”[6]

A nossa construção social nos impõe um estilo de fala, de expressão. E não apenas a nós, mulheres, mas a diferentes classes sociais e posições sociais. Quanto maior seu prestígio, mais “correto” você deve falar. O resultado? Uma estagnação social baseada na língua erudita que, cá entre nós, sequer existe.

Como mulheres, devemos falar em tom dócil e amável. Não podemos ser agressivas, afinal, isso é coisa de homens. É sabido também que, por sofremos coerção dos homens, muitas vezes temos receio de nos posicionarmos. Isso quando há qualquer relação de poder, na verdade. Chefe e empregado, pai e filho. Mas entre o sexo masculino poderoso e o feminino subordinado, isso aparece ainda mais. Além do receio de sermos coagidas, há a coerção em si. Quando nos repreendem por falarmos de determinado modo, ou fazem uma piada por errarmos uma palavra, pleonasmos,etc.

“As mulheres falam cada vez menos freqüentemente que os homens. As mulheres são mais cuidadosas que os homens em usar a gramática correta, são mais conservadoras quando se trata de inovação estilística, usam adjetivos de emoção de preferência a de movimento, formam metáforas conflitantes, ambivalentes, de preferência a lugares-comuns. As mulheres mostram preferência também por estruturas modais como "poderia ter sido", indicando incerteza e indecisão. Outras diferenças, empiricamente menos estabelecidas mas observadas, são o uso, pelas mulheres, de adjetivos "vazios" tais como "encantador" ou "amável" ou de perguntas reiterativas, como "entendeu?", "certo?", para atenuar a força afirmativa, além da tendência das mulheres a serem mais polidas e mais receptivas.”[7]

O patriarcado nos oprime na expressão. Vivemos em uma suposta democracia, que garante os mesmos direitos a todos (essa é a hora das risadas), mas não nos é permitido falar.

Temos também a questão das palavras comuns de dois gêneros, aproveitando o ensejo. Como quem domina a linguagem dita culta são os homens, temos um certo receio quanto a algumas mudanças naturais da língua.

Não apenas as mudanças como você>>cê, mas também mudanças necessárias, de posicionamento político mesmo, como os gêneros das palavras. Não há nenhuma explicação razoável (lembrando que “mas é regra gramatical” não vale, pois as línguas estão em continua mutação) para não se mudar os plurais e as palavras “comuns de dois gêneros”.

Cito aqui a Pilar del Rio em uma entrevista bastante conhecida:

“Pilar del Rio: Só os ignorantes é que me chamam presidente. A palavra não existia porque não havia a função, agora que existe a função há a palavra que denomina a função. As línguas estão aí para mostrar a realidade e não para a esconder de acordo com a ideologia dominante, como aconteceu até agora. Presidenta, porque sou mulher e sou presidenta.

João Céu e Silva: Mas a palavra não existe!

Pilar del Rio: Porque é que entre uma mulher e um animal tem primazia o gênero do animal? Porque dizem “Vêm os dois” se é uma mulher e um cão quem vem? Em vez de dizerem que não se pode dizer presidenta, mas ministra sim, solucionem essa injustiça e canalhice. Que os doutos acadêmicos resolvam um conflito que tem séculos porque não têm sensibilidade para apreciar a questão ou nem se aperceberam. Por isso, justificam com leis gramaticais ou simplesmente silenciam e riem-se das pretensões da mulher porque se acham superiores. Em quê?”(grifos meus)

Não vamos pensar que isso tudo é pouca coisa. Talvez seja pouco, se comparado com todos os outros preconceitos e abusos que sofremos. Mas é um pouco que não abro mão de lutar também. É o pouco que me garante uma mínima liberdade: a de falar. E não me calo ou deixo cair por uma correção, zombaria ou interrupção. Bater o pé é a única solução.

Precisamos fazer com que haja uma mudança de pensamento a respeito da língua e, principalmente das relações entre aqueles que a utilizam. É fato que as línguas mudam. A sociedade precisa mudar também.

colaboração de Paula Penteado

[1] BUTLER, Judith, Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, página 19

[2] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 204

[3] BAGNO, Marcos, Mídia, preconceito e revolução in A norma oculta: língua e poder na sociedade brasileira, página 13

[4] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 206

[5] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 206

[6] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 204

[7] NYE, Andrea, Uma linguagem da mulher in Teoria Feminista e as Filosofias do Homem página 205

2 comentários:

  1. Concordo com muito do que foi dito, mas algumas coisas me incomodam, principalmente quando ditas nessa linguagem enfática e, digamos, furiosa.

    A primeira delas é quando se diz que a linguagem é machista e etc. A linguagem pode até ser um construto simbólico, mas ela é construída socialmente por seus falantes, inclusive pelas mulheres. Se ela é machista, isso é culpa não só dos homens, mas de uma construção sócio-histórica.

    A segunda, é a questão da descaracterização da imagem social advinda do "mau uso" da língua. Não creio que as mulheres sofram mais com isso do que os homens.

    E a terceira é que, pôxa, as pesquisas em psicolinguística mostram que os nomes masculinos são processados mais rapidamente que os femininos, o que é uma evidência de que no português o masculino é realmente o NEUTRO. Isso não é machismo, vai?

    No mais, gostei do texto.
    (oopinativo.blogspot.com)

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  2. Olá, Igor.
    Então, veja bem: sim, a linguagem é construída pelos próprios falantes (eu inclusive coloquei isso no texto). Só que a parte dominante da sociedade é que a dita de verdade. Tanto é que casa grupo de falantes possui sua própria linguagem. Dai as mulheres falarem, geralmente, diferentemente dos homens, dai os gays e lésbicas também, etc, etc. Se a linguagem é machista isso é sim culpa de quem a dita majoritariamente, ou seja, os homens. Não estou dizendo que "oh meu deus do céu, os homens são diretamente culpados por isso", pq muitas vezes é involuntário. Muitas outras vezes não é também...

    Sim, as mulheres sofrem mais discriminação pelo uso "errado" da língua. Temos que comparar, aqui, pessoas de uma mesma classe social, para não confundirmos os preconceitos, que são muitos.

    E, por fim, aqui a discussão não é tanto da neutralidade linguistica do português, mas sim da neutralidade de seus falantes. Quando nos recusamos a dizer "presidenta" estamos nos recusando a admitir que uma mulher pode ser presidenta e não apenas seguindo regras gramaticais.

    Espero que tenha conseguido esclarecer meus pensamentos sobre esse assunto.

    Obrigada pelo comentário

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